quinta-feira, 14 de junho de 2007

Resenha do texto “A Revolução de 1930” de Boris Fausto

O artigo “A Revolução de 1930”, de Boris Fausto (Brasil em Perspectiva, Bertrand Brasil) pretende explicar as condições econômicas e políticas que permitiram a formação da Aliança Liberal e a eclosão do movimento revolucionário de 1930.
A sociedade brasileira tem sido caracterizada, na Primeira República, como um organismo social em que predominam os interesses do setor agrário-exportador, voltado para a produção do café.
A maneira pela qual este setor garantiu sua renda durante os primeiros anos da República aumentou a dependência brasileira com relação ao capital externo. O mecanismo da desvalorização cambial, por sua vez, foi um forte limitador dos efeitos da baixa do produto, socializando as perdas do setor cafeeiro. No entanto, num segundo momento, quando a depreciação cambial chega a pontos extremos, a burguesia cafeeira se vê novamente em situação difícil e há uma crise de preços do café, resultado da superprodução que começa a se instalar no mercado internacional. A saída foi a valorização do produto, com a retirada do mercado de parte da produção.
Entretanto, a política de valorização exigia recursos financeiros consideráveis. Um novo apelo ao capital externo tornaria o setor cafeeiro especialmente vulnerável às oscilações do mercado internacional, o que de fato ocorreu.
A burguesia cafeeira conseguiu impor ao país seus interesses econômicos durante várias décadas. Até porque não existia na época uma burguesia industrial que pudesse se opor à do café.
A incipiente industrialização brasileira se desenvolvia de forma descontínua e irregular, dependendo de divisas provenientes do próprio café e de oportunidades que provisoriamente apareciam, vindas do exterior.
Assim sendo, as oligarquias cafeeiras regionais predominavam na República Velha e o Estado não apresentava nenhuma ameaça à autonomia regional, razão pela qual não se observa, no período, a formação de partidos políticos que representassem interesses nacionais.
É neste quadro de forças que surge a Aliança Liberal, “de um acordo entre Estados cujos interesses não estão vinculados ao café (...)”, no fim da década de 20, trazendo a reforma política para o centro de seu programa e defendendo a representação popular através do voto secreto e a adoção de medidas que evitassem a fraude. Getúlio Vargas surge, então, como o candidato da Aliança Liberal e o Rio Grande do Sul como força oposicionista ao governo de Washington Luís.
A fraude, entretanto, vai marcar novamente as eleições de 30, desencadeando, juntamente com o assassinato de João Pessoa, a reação revolucionária que leva Getúlio Vargas à presidência da República. A classe média e o movimento “tenentista”, desta forma, serviram como importantes instrumentos de instauração e manutenção do governo revolucionário.
Outro dado importante é que a própria burguesia cafeeira já se encontrava insatisfeita com o governo de Washington Luís pelo fato deste Ter se recusado a atender determinadas reivindicações da lavoura, como emissões para seu financiamento e moratória, já que os capitais externos tornaram-se escassos e as dívidas já eram bem grandes.
A depressão internacional que ocorre em 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, também pode ser, para Fausto, um dos elementos explicativos para a revolução de 30.
Após a revolução, os problemas da economia cafeeira voltam à cena nacional. Neste período, as disputas entre os “tenentes” e os quadros políticos tradicionais ficam mais acirradas e o progressivo afastamento quadros políticos paulistas do poder central leva os diversos setores da burguesia de São Paulo á luta armada em 1932, levando o governo, mesmo tendo ganho a disputa, a atender algumas das reivindicações dos setores revoltosos.
Ironicamente, a parte da burguesia paulista que havia se manifestado a favor de Getúlio na campanha promovida pela Aliança Liberal veio a se transformar dois anos depois na alma das manifestações contra o governo nascido da revolução.
O mesmo se deu com os “tenentes”: nunca conseguiram adquirir coesão interna de modo a constituir-se num partido político e obter o efetivo apoio de qualquer categoria social, acabando por esvaziar-se de sentido.
Em síntese, mesmo definindo com segurança um tipo de relação entre o Estado e o operariado, o Governo que se estabelece no Brasil, em 1930, não representa os interesses de qualquer segmento da sociedade, não sendo capaz de modernizar o país nem estabelecer uma economia forte e não dependente.

Resumo do texto “Uma Teoria Científica da Cultura” de B. Malinowski

Tentando estabelecer a base teórica do que mais tarde viria ser conhecido como Antropologia Social, Bronislaw Malinowski, em seu livro “Uma Teoria Científica da Cultura” lança o olhar sobre o panorama da cultura e busca definir a relação entre essa realidade cultural e as necessidades humanas.
A cultura seria, define o autor, um ambiente secundário e artificial formado por diversas estruturas organizacionais interdependentes criadas pelo ser humano com o intuito de satisfazer todas as necessidades básicas dos membros da comunidade que a criou. Ela deve ser tratada como um todo integrado e coerente repleto de costumes perfeitamente elaborados e cheios de significação. Dessa maneira, Malinowski faz uma crítica à visão difusionista negando que a cultura seja uma estrutura fragmentada, ou seja, um agregado de componentes isolados, comparando-a com um organismo vivo no qual cada parte contribui para a manutenção de todas as outras.
A análise que tenta definir a relação entre a realização cultural e as necessidades humanas é denominada funcional. O conceito de função, por sua vez está ligado ao de organização: a fim de atingir uma meta, os homens têm que se organizar em torno de um esquema bem definido que o autor propõe chamar de instituição.
O conceito de forma entra aqui como outro que não pode ser dissociado do de função, pois se este último está relacionado com o objetivo de determinada instituição, o primeiro representa a maneira através da qual essa instituição atinge seu objetivo. A forma seria o tipo concreto do comportamento dos agentes envolvidos em uma relação social.
Definidos os conceitos de função, forma e instituição, o autor introduz uma teoria de necessidades que, tendo em vista esses mesmos conceitos, retoma o argumento implícito no desenvolvimento da discussão: a idéia de que cada cultura deve satisfazer as necessidades orgânicas e básicas do ser humano.
Com isso, Malinowski pretendeu dar sua contribuição para o estabelecimento de uma metodologia científica que ele considerava indispensável para a realização de pesquisas de campo e para uma análise comparativa dos fenômenos de diversas culturas existentes.

À luz, o Samba

Gênesis
Aldir Blanc/João Bosco

Quando ele nasceu foi no sufoco,
Tinha uma vaca, um burro e um louco,
que recebeu "Seu Sete".
Quando ele nasceu foi de teimoso,
Tinha a manha e a baba do tinhoso,
Chovia canivete.
Quando ele nasceu, nasceu de birra,
Barro, ao invés de incenso e mirra,
Cordão cortado com gilete.
Quando ele nasceu, sacaram o ‘berro’,
Meteram a faca, ergueram o ferro,
Aí, Exu falou: “Ninguém se mete”.
Quando ele nasceu, tomaram cana,
Um partideiro puxou samba,
Aí, Oxum falou: “Esse aí, promete”.

Segundo Arnold Van Gennep, toda sociedade contém várias sociedades especiais, com sistemas simbólicos próprios, que são tanto mais autônomos e bem definidos quanto menor for o grau de civilização da sociedade geral. Ocorre também que quanto menor esse grau de civilização, maior a influência do mundo sagrado sobre o profano e sobre as diversas atividades do cotidiano.
Note-se, entretanto, que tanto numa dessas sociedades especiais, quanto em qualquer uma das outras ditas ‘civilizadas’, não deixa de existir a necessidade de satisfazer determinadas condições de representação em determinados momentos da vida, ou da morte.
Em hipótese alguma se pode considerar que as sociedades contemporâneas sejam mundos onde há ausência de rituais, uma vez que todas se organizam em torno de sistemas simbólicos.
Se o sistema simbólico é mítico por excelência, sua ação é necessariamente ritual. Nesse sentido, podemos afirmar que o rito pretende através da celebração ou exaltação, reforçar os valores de determinada cultura, servindo também para introduzir os jovens nos padrões de comportamento do grupo.
Segundo Medina (1973), os povos primitivos executavam cânticos que não somente poderiam fazer parte de determinada cerimônia, como também por muitas vezes consistiam no próprio ritual.
Ainda segundo esse autor, a música nas sociedades contemporâneas, perdeu a dimensão sagrada e mística que possuía. E para combater a “diversão orientada” que se instalou por meio da comunicação de massa, surgem grupos que atuam no sentido de intensificar esses ritos, mesmo sem a correspondência com o sagrado, preenchendo-os com uma dimensão lúdica que poderá levar seus participantes a um conhecimento da realidade em que vivem, falando sobre seu cotidiano ritualizado.
Nosso objetivo neste ensaio é tentar entender como, em diversas ocasiões, a música popular brasileira, particularmente o samba, se apropria e conta determinados ritos de passagem.
Com base no trabalho de Van Gennep pretendemos nos concentrar especificamente nos ritos de separação e agregação que se dão no momento do nascimento, por ele descritos, tendo em vista o trabalho que seria necessário despender no sentido de abranger os mais diversos ritos ainda presentes na cultura urbana.
Para isso valemo-nos, inicialmente, do samba “Gênesis”, de autoria de Aldir Blanc e João Bosco.
Na letra de Aldir Blanc, fica claro o pensamento de Van Gennep quando no capítulo V de “Os ritos de passagem” ele trata especialmente do momento do nascimento, referindo-se aos rituais de separação/agregação do recém-nascido, que “não pode nascer senão depois de ter obtido o favor de todos os assistentes” (p. 59). É por isso que Exu recebe e protege o recém-chegado:
“Quando ele nasceu sacaram o “berro”,
Meteram faca, ergueram o ferro,
Aí, Exu falou: “Ninguém se mete”.

A letra de Blanc trata de vários elementos que estão presentes na análise de Van Gennep. Em primeiro lugar, a indicação do sexo: não há dúvida de que se trata de um menino, tanto pelo pronome “ele” quanto pelo cerimonial do corte do cordão umbilical, que representa também o fim da sua condição de assexuado, ou seja, a separação entre o recém-nascido e o mundo ao qual ele pertencia, nesse caso a sua mãe. O “Cordão cortado com gilete”, um instrumento tão pouco ortodoxo numa situação que requereria, nas sociedades contemporâneas, uma tesoura desinfectada, sugere que espera-se que ele seja um forte, já que
“Quando ele nasceu foi de teimoso.
Tinha a manha e a baba do tinhoso”.

Uma comparação interessante feita pelo letrista, e que representaria a posição social do recém-nascido, é a que faz entre os presentes recebidos pelo menino e aqueles recebidos por Jesus Cristo no seu nascimento:
“Quando ele nasceu, nasceu de birra.
Barro, ao invés de incenso e mirra “.
isto é, sem direito a riqueza e a glória e, provavelmente, sem a aura que poderia torná-lo um mártir, amargando uma crucificação, digna do Rei dos Judeus. Por isso a única coisa que recebeu foi o barro que, segundo A. Dieterich, citado por Van Gennep, pode significar também o prenúncio do retorno da criança à Terra Mãe, como um simples mortal.
Voltando à análise de Van Gennep, encontra-se referência ao fato de que o rito de separação entre o recém-chegado e mãe pode servir de motivo para festas e comemorações em família. Na letra de Blanc,
“Quando ele nasceu tomaram cana.
Um partideiro puxou samba.
Aí, Oxum falou: “Esse aí promete”.

Nascida a criança, ela normalmente recebe um nome que a agrega ao grupo e a identifica dentro do mesmo.
A questão do nome é, para Van Gennep, sem dúvida um rito de agregação. No entanto, se pelo nome a criança é individualizada, pode, ao menos por determinados períodos de tempo, ser designada genericamente. No caso da letra de Aldir Blanc, é designada como “ele”, o que sugere que só mais tarde é que virá a ter um nome, isto se não tiver apenas um apelido.
Esta situação é bastante comum nas classes sociais mais pobres, nas sociedade capitalistas contemporâneas, marcadas por profunda desigualdade econômica. Aliás, a falta do nome, nas camadas mais pobres, que parece indicar uma situação de liminaridade permanente, não é difícil de acontecer. Não ter nome significa não ter uma identidade, condição das pessoas que não são cidadãs, que não estão completamente assimiladas, nem do ponto de vista social nem do ponto de vista civil e esta, no Brasil, não é uma situação impossível.
A pobreza pode vir a romper também com a idéia de que para se chegar ao mundo é preciso licença, o que contém também, sem dúvida, a idéia de liminaridade. Victor Turner, que também produziu explicações teóricas fundamentais sobre os ritos de passagem, trabalha com a noção de liminaridade, isto é, com a possibilidade de, por um determinado espaço de tempo, haver um posicionamento fora das hierarquias, da estrutura e da ordem social. Essa é uma contribuição importante para o entendimento do processo em referência.
Chico Buarque de Holanda, em sua letra de “Meu Guri”, apresenta muito claramente o fato de que não ter ‘nem’ nome é um dado que faz parte da existência de alguns membros das camadas mais pobres da população:
“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar.
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome prá lhe dar.”

É evidente que a não completude do ritual do nascimento do guri faz parte do quadro de marginalidade em que ocorre a sua vida, e que só não é percebido pela mãe, de quem, na verdade, ele não se apartou pois não se completou o ritual de separação/agregação. Por conta disso, ele foi sempre o ‘seu’ guri. Tão inidentificado quanto ela.
“Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro:
chave, caderneta, terço, patuá, um lenço
e uma penca de documentos prá, finalmente,
eu me identificar.
Olha aí, olha o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.”

Quando o nascimento se completa, a identidade está fixada e o indivíduo se vê plenamente integrado ao seu grupo. Noel Rosa deixa isso muito claro em “O X do problema”:

“Nasci no Estácio
e fui educada na roda de bamba,
eu fui diplomada na escola de samba.
Sou independente, conforme se vê.
..........................................................
Nasci no Estácio
não posso mudar minha massa de sangue.
Você pode crer que palmeira do mangue
não vive na areia de Copacabana.“

Essas narrativas falam todas elas sobre o percurso de rituais: de um momento anterior em que o sujeito ainda não ‘é’, da trajetória liminar que precisa percorrer para ‘ser’ e do que, se completando, assegura a constituição da identidade. DaMatta, em seu “Carnavais, malandros e heróis”, diz que, no que se refere aos ritos, para ele o mais importante é reter a noção de movimento, processo e deslocamento que o ritual sugere. Com isso, percebe-se que é possível que algumas práticas se reconfigurem, sem perder sua qualidade de rito. Aliás, não é sem razão que Segalen (2002) destaca a idéia de que “uma das principais características do rito é a sua plasticidade, a sua capacidade de ser polissêmico, de acomodar-se à mudança social”. (p.15)
Medina (1973), citando McLuhan, diz que “uma sociedade oral e tribal tem meios de estabilidade além do que é possível para um mundo fragmentado, civilizado e visual” (p. 47) e, poderíamos completar, ‘desigual’, Mas mesmo assim, nem sobre ele é possível afirmar que impera apenas o racional e que dele os rituais estão ausentes.
Em inúmeros outros sambas identificamos que há, mesmo nas sociedades urbanas, a permanência de práticas rituais que cercam não só o nascimento, mas vários outros ritos.
À guisa de conclusão, podemos dizer que a teorização realizada por Van Gennep e Turner tem permitido a muitos sociólogos e antropólogos refletir sobre as relações que ocorrem entre os homens/mulheres entre si e entre os homens/mulheres e o lugar em que vivem, ajudando-os a suportar, como diz DaMatta na apresentação de “Os ritos de passagem”, “os gestos mais pesados da vida cotidiana”.
A interpretação dialética que fazem dos ritos, identificando seu movimento de tese-antítese-síntese, explica vários momentos que marcam a vida dos seres humanos, nessa contradição permanente nascimento/morte, nesse jogo em que todos estamos de passagem.

Uma Concepção Antipositivista da Ciência: uma leitura de Boaventura Souza Santos

O objetivo deste texto é, em linhas gerais, apresentar as principais idéias contidas no livro “Um discurso sobre as ciências”, do Prof. Boaventura de Sousa Santos, publicado no ano de 1987, em Portugal, e que corresponde a uma versão ampliada do discurso por ele proferido na abertura solene das aulas da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86.
Nessa obra o autor defende uma posição teórica antipositivista com relação às diversas áreas do conhecimento científico que, para ele, será sempre definido socialmente. Isso significa que, apesar de objetiva, a ciência não pode ser neutra.
Ao caracterizar, mesmo que de forma sucinta, a ordem científica hegemônica, Boaventura observa que o paradigma científico dominante na sociedade moderna, constituído a partir do século XVI, foi desenvolvido dentro do espaço delimitado pelas ciências naturais. Estabelece-se, então, uma distinção clara entre as ciências naturais e o conhecimento não científico, dentro do qual podemos destacar tanto o senso comum como os estudos humanísticos, nos quais se incluem a filosofia, o direito, a história, a literatura e outros.
Por considerar que nada escapa aos seus horizontes, essa perspectiva científica é também totalitária, visto que nega a possibilidade de racionalidade de quaisquer outras formas de conhecimento que não sigam seus princípios, leis e métodos. Segundo essa concepção, ao contrário do que pensava Aristóteles, o cientista deve sempre desconfiar da experiência imediata por esta ser ilusória. A observação do objeto deve ser, por conseguinte, sistemática e rigorosa, não dispensando a teoria prévia, mas requerendo, através da observação dos fatos, sua verificação.
Do rigor científico inerente a este paradigma decorrem duas situações: a primeira, é a pouca importância dada às características ou qualidades dos objetos estudados, em favor da sua quantificação ou mensuração; a segunda, é a tendência à monocausalidade, observada na redução da complexidade dos fatos observados.
A formulação das leis da ciência se baseia, de acordo com esta visão, no isolamento arbitrário das condições iniciais (causas) relevantes e na idéia de que os mesmos resultados se produzirão de forma mecânica, sempre que estiverem presentes essas condições iniciais, independentemente do tempo e do espaço.
No plano social, esse mecanicismo era a idéia que melhor se adequava aos interesses da burguesia ascendente, que enxergava nessa sociedade o estágio final da evolução humana.
A influência desse modelo mecanicista nas ciências sociais ocorreu, entretanto, de duas formas mais ou menos distintas. A primeira delas consistia em aplicar ao estudo da sociedade os princípios das ciências naturais. Um dos principais obstáculos a essa perspectiva foi sempre a dificuldade de se estabelecer leis universais, tendo em vista que os fenômenos sociais são histórica e culturalmente condicionados.
A segunda maneira através da qual o modelo mecanicista se manifestou nas ciências sociais, partia da idéia de que esta última deve desenvolver seus próprios métodos de investigação. No entanto, assim como na primeira vertente, nesta também está implícita a concepção de distinção entre natureza e ser humano.
Para o autor, são fortes os indícios de que o paradigma científico dominante apresentado acima está em declínio e que esta crise é irreversível. Isso ocorre, em primeiro lugar, devido à exposição de suas insuficiências estruturais, causadas, entre outras coisas, pelo grande avanço tecnológico que ele próprio propiciou.
Outro fator que contribuiu para a já referida crise é a existência de limites para o rigor da medição que possibilitaria o conhecimento. Percebeu-se, claramente, só se poderia chegar a resultados aproximados, inviabilizando o determinismo mecanicista.
Por fim, as idéias de autonomia e desinteresse do conhecimento científico, que durante anos foram defendidas pelos cientistas, foram derrubadas diante da industrialização da ciência. Esta última contribuiu para o aumento da dependência do conhecimento científico em relação aos pólos de poder social, político e econômico mundiais.
Nesse sentido, é através da via especulativa que o autor aponta, em meio a toda essa crise dos modelos científicos colocados até então, para a configuração de uma nova racionalidade científica, a qual ele mesmo chama de paradigma emergente. Este, por sua vez, não pode ser apenas um paradigma científico, mas também social, onde a distinção entre ciências naturais e sociais desapareça, visto que o conhecimento científico é determinado socialmente. Somente dessa maneira será possível escapar da concepção mecanicista de natureza e de sociedade que retira do homem a possibilidade de ação sobre seu próprio destino.
Boaventura não se limita, porém, a indicar a tendência de superação dessa distinção, ele indica também o sentido e o conteúdo dessa superação, que ocorre agora sob a égide das ciências sociais.
O autor destaca que, ao contrário da ciência moderna, instituída no século XVI, na qual quanto mais rigoroso é o conhecimento, mais arbitrariamente partilhado é o objeto sobre o qual ele incide, o paradigma emergente caminha no sentido da totalidade, isto é, da não-fragmentação. No entanto, sendo total, o conhecimento também é local, pois é adotado por grupos sociais com projetos locais. E sendo local, ele é total, pois retoma os projetos locais de busca do conhecimento, destacando a peculiaridade do objeto estudado e transformando esse conhecimento em pensamento total.
Por isso mesmo, uma outra construção, típica do pensamento científico advindo da modernidade, que está sendo derrubada, mesmo no campo das ciências físico-naturais é a dicotomia sujeito/objeto,
Para o autor há uma evidência clara de que esse rompimento precisa ser superado em função de se constatar que o sujeito constrói o objeto sobre o qual discursa. É neste sentido que Boaventura afirma que todo conhecimento é autoconhecimento, porque gerado dentro do homem e na sociedade, partes integrantes da explicação científica, que é, aliás, apenas mais uma explicação da realidade, o que significa dizer que não é a única. Num certo sentido, representa até um juízo de valor considerá-la mais verdadeira.
A rearticulação do par sujeito-objeto requer o entendimento de que as crenças, os juízos, os valores que o investigador carrega em si, como homem que é, são também um conhecimento importante e que permite a construção de outros saberes. Para ele, esse caráter auto-biográfico e auto-referenciável está sendo compreendido como constituidor do pensamento científico pós-moderno.
O pensamento complexo, advogado pelo autor como o que pode dar conta do vínculo homem-natureza, necessita, na ótica de Souza Santos, de todo e qualquer conhecimento, inclusive do conhecimento do senso comum, no qual conhece certas virtualidades.
Neste sentido, aconselha sem nenhum pudor, um diálogo entre o pensamento científico e o senso comum, com o objetivo de que as vantagens de ambos sejam potencializadas dando, origem, segundo ele, a uma nova racionalidade.
Recomenda que – ao contrário do corte epistemológico proposto pela ciência moderna, que significava o rompimento com o senso comum e a instituição de uma outra forma de pensar o mundo, considerada científica – o conhecimento científico da pós-modernidade se deixe entranhar pelo senso comum, no que ele tem de sabedoria de vida, e este último pelo saber científico, no que ele pode representar de explicação sobre o homem, sob diversos aspectos.
Conclui dizendo que reconhece que esta é uma possibilidade que ainda não se concretizou, até porque o paradigma emergente que anuncia está em gestação, neste momento de transição no qual se pretende recolocar novas formas de pensar e entender o mundo, afinal a grande e infindável aventura humana.

Gênero: samba... Gênero: feminino

Apesar das imensas conquistas alcançadas pelas mulheres da sociedade ocidental contemporânea, no Brasil, ainda nos deparamos com fortes vestígios de uma ideologia hierárquica, que trazem desvantagens para as mulheres brasileiras, que têm desenvolvido mecanismos de defesa, usando como "arma" a inteligência, a competição no mercado de trabalho e a liberdade sexual. A problematização desta questão constitui o tema central deste trabalho.
A percepção que se tem é a de que a questão de gênero, embora não seja nova no contexto das Ciências Sociais, ainda foi muito pouco absorvida pela academia. Sua inserção no conjunto mais amplo das disciplinas, pouco significou, criando um tema à parte, que não se enraizou como deveria nas Ciências Sociais. Não se contempla o viés do gênero na maioria das discussões que essas ciências abordam.
Não se pode ignorar que durante séculos as mulheres viveram sob o jugo masculino em um modelo social patriarcal, onde elas eram vistas como meros "objetos" negociados através do casamento. Seu papel nesta sociedade hierárquica era procriar e servir ao marido.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra “Raízes do Brasil”, foi a família patriarcal o centro de toda a organização do Brasil Colônia, de acordo com as regras do antigo direito romano-canônico herdado da metrópole portuguesa.
Tomando como referência o papel da mulher no mundo do samba, na sociedade carioca do início do século XX até hoje, pode-se perceber a luta das mulheres para modificar o papel social que lhes era atribuído nesta estrutura, desde sempre.
Tradicionalmente, o papel desempenhado pelas mulheres era o de dedicação ao lar, aos quintais, aos amigos dos maridos e conhecidos que procuravam esses quintais para jogar “conversa fora”, tocar, ensaiar e criar, como no caso das famosas “tias” que surgiram na região que vai da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro até a Cidade Nova, denominada “Pequena África”. Vale lembrar que foi no quintal de uma dessas tias, a tia Ciata, na Praça XI, que o samba, nasceu, cresceu, virou expressão máxima da cultura brasileira e se espalhou por tantos outros quintais, sempre sob as bênçãos dessas mulheres que uniam o canto e o jeito de verdadeiras donas de terreiro ao dom especial de saber cozinhar muito bem e em quantidade sempre generosa. A tradição das tias ainda resiste nos subúrbios cariocas, embora não se vislumbre sucessoras, até porque as mulheres que se destacam, hoje, no mundo do samba têm interesse em assumir outro tipo de papel.
Somente pela transgressão da ordem doméstica e familiar foi possível para algumas dessas mulheres abandonarem a condição de donas de casa para se juntarem aos grupos de compositores e instrumentistas, majoritariamente masculinos.
Chiquinha Gonzaga, ainda no séc. XIX, e Dona Ivone Lara, em meados do séc. XX, são bons exemplos de mulheres que, com talento e muita coragem, foram reconhecidas por sua obra e fugiram ao modelo de mulher submissa, dócil e servil.
Dona Ivone Lara, a primeira mulher a compor um samba-enredo, conta que, na Escola de Samba Império Serrano, já assinava muitos sambas e partidos altos que eram mostrados a outros sambistas pelo seu primo, Mestre Fuleiro, como se fossem dele:
“Além de fazer fantasias, eu desfilava na ala das baianas e compunha para a escola, mas no anonimato”, diz ela.
Martin'ália, filha do também compositor e sambista Martinho da Vila, é da ala de compositores do G.R.E.S. Vila Isabel desde 1997, e não precisa esconder de ninguém:
“Não sofro preconceito, talvez porque já conheçam meu trabalho. O povo curte”, diz ela, que toca praticamente todos os instrumentos da escola e improvisa com o que aparecer pela frente.
Teresa Cristina, que começou a carreira na Lapa, no bar Semente - nome com o qual batizou a banda que a acompanha – teve que gravar seu primeiro disco por uma gravadora independente. A tímida carioca de 34 anos, que já foi vendedora, auxiliar de escritório e manicure, enquanto começava sua carreira de cantora, foi outra que lutou para ver reconhecido seu talento e entrar para a história do samba, até que foi convidada para interpretar canções de Paulinho da Viola.
“Adoro o Paulinho e essa oportunidade de gravar um CD eu não poderia nunca jogar fora”, diz ela.
Mulheres sambistas que também têm história de preconceito para contar são as do grupo “O Roda”, formado por Ana Costa, Bianca Calcagni e Dedé Alves.
“Já sofremos muita discriminação. Hoje, menos, porque o público já conhece nosso trabalho. Mas no início, dava pra perceber a desconfiança nos olhares, uma indagação do tipo: ‘‘Mulher instrumentista? Sei não’’, diz Ana Costa.
No festival Fábrica do Samba, que teve sua primeira edição em fevereiro, a vencedora na categoria de Melhor Intérprete foi Dorinna, com sua voz suave, porém firme.
“Fiquei emocionada com o prêmio. Já que estou há muito tempo nessa estrada. Pena que as gravadoras ainda não reconheceram nosso valor. Elas pensam que mulher não tem voz para cantar samba”, lamenta a cantora, que se prepara para lançar o terceiro disco independente, gravado ao vivo no Teatro Rival BR.
Todas essas histórias estão inscritas num cenário de representações sociais, elaboradas pelo coletivo de um grupo, e têm a marca da tensão, que lhes dá um sentido e busca mantê-la nos limites do suportável.
As representações sociais, enquanto imagens construídas sobre o real, não são necessariamente conscientes. Atravessam, no entanto, a sociedade ou um determinado grupo social, como algo anterior, tradicional, habitual, que se reproduz a partir das estruturas e categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos.
Representar um objeto é conferir-lhe o status de um signo, é torná-lo significante logicamente, dominá-lo, tornando-o nosso. O papel feminino tradicional, numa estrutura social como a dos terreiros de samba, tem uma representação muito nítida: tem sido uma forma de identificar a mulher como aquela que deve servir e estar à disposição do homem. Romper com essa percepção é transgredir.
Mas se as mulheres negras, no samba, estão transgredindo, isto não pode ser estendido para o conjunto de todas as mulheres negras no Brasil.
Avanços nas condições das mulheres de todos os países do mundo não chegam à mulher negra brasileira. Apesar de terem deixado de ser invisíveis, as estatísticas mostram que a concentração feminina negra é maior como empregadas domésticas, secretárias, professoras, vendedoras, balconistas e
enfermeiras . Se nos detivermos na ocupação das compositoras, instrumentistas e cantoras citadas acima, poderemos perceber que se situavam nesses arcos profissionais. Dona Ivone Lara era enfermeira; Teresa Cristina foi vendedora.
Apesar de o censo de 1990 indicar existirem cerca de 30.000 altas executivas, no Brasil, a maioria das mulheres negras não se localiza nestes quadros. Elas ainda precisam lutar pelo acesso a ocupações tidas como “femininas e brancas”. Mesmo com diploma de curso universitário, as mulheres negras são subestimadas e rejeitadas.
Pode-se concluir que além de terem de vencer o preconceito de gênero, as mulheres negras no Brasil ainda devem vencer a barreira étnica.

Resenha do texto "Movimentos Sociais Latino-Americanos: Características e Potencialidades"


No texto "Movimentos Sociais Latino-Americanos: Características e Potencialidades", José Maurício Domingues lança um olhar amplo sobre a América Latina em seus últimos dez anos, a partir do aparecimento e desdobramento de diversos dos seus mais significativos movimentos sociais. Mas para isso, o autor se vê obrigado realizar uma análise histórica através da qual ele divide a modernidade latino-americana em três fases. A primeira delas é a fase liberal vigente no século XIX, na qual se acreditava que o estado deveria ter um papel secundário na economia.
A segunda fase teve início a partir do colapso do pensamento liberal, que foi substituído pelos ideais desenvolvimentistas, traduzindo-se, entre outras formas de governo, no estado de bem-estar social, ainda na primeira metade do século XX. Nesse contexto, o estado ocupava um lugar de muito maior destaque na manutenção da ordem social, transformando-se no seu principal agente.
Segundo Domingues, no ocidente, o movimento operário foi o principal movimento social dessas duas primeiras fases da modernidade e tem na teoria marxista sua principal fonte de inspiração para a maior parte das tentativas de interpretação do movimento. Em seguida, o autor faz questão de destacar a importância de outros movimentos, como o feminismo e o movimento camponês - com especial atenção para a incorporação desse último pelo movimento operário - para uma tentativa de entendimento do contexto histórico vigente.
A crise econômica que se inicia nos anos 70 e dura até os anos 90 do século passado marca o fim da segunda fase da modernidade proposta pelo autor e o início da terceira. Esta fase é caracterizada pelo triunfo do pensamento neoliberal, que, segundo Domingues, na prática, surte um efeito desastroso tanto do ponto de vista econômico, quanto sócio-político. Esse momento, entretanto, coincide com a transição dos regimes ditatoriais para os democráticos em toda a América Latina.
Dessa forma, o autor irá caracterizar a terceira fase da modernidade no subcontinente – e nesse sentido ele não deixa de considerar a crescente globalização econômica e cultural – como sendo o período de maior exposição das sociedades, agora mais complexas, a padrões globais, nos quais os indivíduos têm maior mobilidade física e identitária e os sistemas políticos oferecem maior possibilidade de participação.
É, segundo o autor, nesse contexto – isto é, com uma classe operária bem mais fragmentada e um estado enfraquecido pela política neoliberal – que ocorrerá o surgimento de novos e significativos movimentos sociais, além da renovação de outros mais antigos. Não há, no entanto, sob essa nova perspectiva, qualquer tipo de hierarquia entre eles.
José Maurício Domingues, no entanto, nos parágrafos que se seguem, mesmo parecendo contraditório, volta a atribuir papel de destaque ao movimento operário, que, segundo ele, apesar de tudo, continua a exercer o papel mais importante dentre todos os movimentos sociais da última fase da moderna América Latina. Ele destaca ainda os movimentos indígenas, os movimentos camponeses, os movimentos sociais contra o racismo, aqueles a favor dos direitos humanos e os movimentos religiosos, estes últimos ocupando agora papel fundamental nos processos sociais de mudança.
Ao final do texto, o autor propõe um esquema de vários itens que, segundo ele, devem ser observados para uma análise adequada dos movimentos sociais, são eles: direcionalidade (fins / historicidade); motivações; acesso a recursos externos; estrutura interna; nível de centramento (identidade / organização); mecanismos (redes / hierarquia) e condições sociais e ambiente interativo.
Finalizaremos, então, nossas observações sobre o texto de José Maurício Domingues destacando dele a idéia que, acreditamos, o tenha impelido a escrever o artigo e segundo a qual os movimentos sociais são o "motor da história, os introdutores de novos modos de vida, propulsores da transformação social". Nesse sentido, acreditamos que o estudo de seus desdobramentos constitui uma bela forma de se lançar um olhar crítico e amplo sobre a história.