quinta-feira, 14 de junho de 2007

Gênero: samba... Gênero: feminino

Apesar das imensas conquistas alcançadas pelas mulheres da sociedade ocidental contemporânea, no Brasil, ainda nos deparamos com fortes vestígios de uma ideologia hierárquica, que trazem desvantagens para as mulheres brasileiras, que têm desenvolvido mecanismos de defesa, usando como "arma" a inteligência, a competição no mercado de trabalho e a liberdade sexual. A problematização desta questão constitui o tema central deste trabalho.
A percepção que se tem é a de que a questão de gênero, embora não seja nova no contexto das Ciências Sociais, ainda foi muito pouco absorvida pela academia. Sua inserção no conjunto mais amplo das disciplinas, pouco significou, criando um tema à parte, que não se enraizou como deveria nas Ciências Sociais. Não se contempla o viés do gênero na maioria das discussões que essas ciências abordam.
Não se pode ignorar que durante séculos as mulheres viveram sob o jugo masculino em um modelo social patriarcal, onde elas eram vistas como meros "objetos" negociados através do casamento. Seu papel nesta sociedade hierárquica era procriar e servir ao marido.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, em sua obra “Raízes do Brasil”, foi a família patriarcal o centro de toda a organização do Brasil Colônia, de acordo com as regras do antigo direito romano-canônico herdado da metrópole portuguesa.
Tomando como referência o papel da mulher no mundo do samba, na sociedade carioca do início do século XX até hoje, pode-se perceber a luta das mulheres para modificar o papel social que lhes era atribuído nesta estrutura, desde sempre.
Tradicionalmente, o papel desempenhado pelas mulheres era o de dedicação ao lar, aos quintais, aos amigos dos maridos e conhecidos que procuravam esses quintais para jogar “conversa fora”, tocar, ensaiar e criar, como no caso das famosas “tias” que surgiram na região que vai da zona portuária da cidade do Rio de Janeiro até a Cidade Nova, denominada “Pequena África”. Vale lembrar que foi no quintal de uma dessas tias, a tia Ciata, na Praça XI, que o samba, nasceu, cresceu, virou expressão máxima da cultura brasileira e se espalhou por tantos outros quintais, sempre sob as bênçãos dessas mulheres que uniam o canto e o jeito de verdadeiras donas de terreiro ao dom especial de saber cozinhar muito bem e em quantidade sempre generosa. A tradição das tias ainda resiste nos subúrbios cariocas, embora não se vislumbre sucessoras, até porque as mulheres que se destacam, hoje, no mundo do samba têm interesse em assumir outro tipo de papel.
Somente pela transgressão da ordem doméstica e familiar foi possível para algumas dessas mulheres abandonarem a condição de donas de casa para se juntarem aos grupos de compositores e instrumentistas, majoritariamente masculinos.
Chiquinha Gonzaga, ainda no séc. XIX, e Dona Ivone Lara, em meados do séc. XX, são bons exemplos de mulheres que, com talento e muita coragem, foram reconhecidas por sua obra e fugiram ao modelo de mulher submissa, dócil e servil.
Dona Ivone Lara, a primeira mulher a compor um samba-enredo, conta que, na Escola de Samba Império Serrano, já assinava muitos sambas e partidos altos que eram mostrados a outros sambistas pelo seu primo, Mestre Fuleiro, como se fossem dele:
“Além de fazer fantasias, eu desfilava na ala das baianas e compunha para a escola, mas no anonimato”, diz ela.
Martin'ália, filha do também compositor e sambista Martinho da Vila, é da ala de compositores do G.R.E.S. Vila Isabel desde 1997, e não precisa esconder de ninguém:
“Não sofro preconceito, talvez porque já conheçam meu trabalho. O povo curte”, diz ela, que toca praticamente todos os instrumentos da escola e improvisa com o que aparecer pela frente.
Teresa Cristina, que começou a carreira na Lapa, no bar Semente - nome com o qual batizou a banda que a acompanha – teve que gravar seu primeiro disco por uma gravadora independente. A tímida carioca de 34 anos, que já foi vendedora, auxiliar de escritório e manicure, enquanto começava sua carreira de cantora, foi outra que lutou para ver reconhecido seu talento e entrar para a história do samba, até que foi convidada para interpretar canções de Paulinho da Viola.
“Adoro o Paulinho e essa oportunidade de gravar um CD eu não poderia nunca jogar fora”, diz ela.
Mulheres sambistas que também têm história de preconceito para contar são as do grupo “O Roda”, formado por Ana Costa, Bianca Calcagni e Dedé Alves.
“Já sofremos muita discriminação. Hoje, menos, porque o público já conhece nosso trabalho. Mas no início, dava pra perceber a desconfiança nos olhares, uma indagação do tipo: ‘‘Mulher instrumentista? Sei não’’, diz Ana Costa.
No festival Fábrica do Samba, que teve sua primeira edição em fevereiro, a vencedora na categoria de Melhor Intérprete foi Dorinna, com sua voz suave, porém firme.
“Fiquei emocionada com o prêmio. Já que estou há muito tempo nessa estrada. Pena que as gravadoras ainda não reconheceram nosso valor. Elas pensam que mulher não tem voz para cantar samba”, lamenta a cantora, que se prepara para lançar o terceiro disco independente, gravado ao vivo no Teatro Rival BR.
Todas essas histórias estão inscritas num cenário de representações sociais, elaboradas pelo coletivo de um grupo, e têm a marca da tensão, que lhes dá um sentido e busca mantê-la nos limites do suportável.
As representações sociais, enquanto imagens construídas sobre o real, não são necessariamente conscientes. Atravessam, no entanto, a sociedade ou um determinado grupo social, como algo anterior, tradicional, habitual, que se reproduz a partir das estruturas e categorias de pensamento do coletivo ou dos grupos.
Representar um objeto é conferir-lhe o status de um signo, é torná-lo significante logicamente, dominá-lo, tornando-o nosso. O papel feminino tradicional, numa estrutura social como a dos terreiros de samba, tem uma representação muito nítida: tem sido uma forma de identificar a mulher como aquela que deve servir e estar à disposição do homem. Romper com essa percepção é transgredir.
Mas se as mulheres negras, no samba, estão transgredindo, isto não pode ser estendido para o conjunto de todas as mulheres negras no Brasil.
Avanços nas condições das mulheres de todos os países do mundo não chegam à mulher negra brasileira. Apesar de terem deixado de ser invisíveis, as estatísticas mostram que a concentração feminina negra é maior como empregadas domésticas, secretárias, professoras, vendedoras, balconistas e
enfermeiras . Se nos detivermos na ocupação das compositoras, instrumentistas e cantoras citadas acima, poderemos perceber que se situavam nesses arcos profissionais. Dona Ivone Lara era enfermeira; Teresa Cristina foi vendedora.
Apesar de o censo de 1990 indicar existirem cerca de 30.000 altas executivas, no Brasil, a maioria das mulheres negras não se localiza nestes quadros. Elas ainda precisam lutar pelo acesso a ocupações tidas como “femininas e brancas”. Mesmo com diploma de curso universitário, as mulheres negras são subestimadas e rejeitadas.
Pode-se concluir que além de terem de vencer o preconceito de gênero, as mulheres negras no Brasil ainda devem vencer a barreira étnica.

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