quinta-feira, 14 de junho de 2007

À luz, o Samba

Gênesis
Aldir Blanc/João Bosco

Quando ele nasceu foi no sufoco,
Tinha uma vaca, um burro e um louco,
que recebeu "Seu Sete".
Quando ele nasceu foi de teimoso,
Tinha a manha e a baba do tinhoso,
Chovia canivete.
Quando ele nasceu, nasceu de birra,
Barro, ao invés de incenso e mirra,
Cordão cortado com gilete.
Quando ele nasceu, sacaram o ‘berro’,
Meteram a faca, ergueram o ferro,
Aí, Exu falou: “Ninguém se mete”.
Quando ele nasceu, tomaram cana,
Um partideiro puxou samba,
Aí, Oxum falou: “Esse aí, promete”.

Segundo Arnold Van Gennep, toda sociedade contém várias sociedades especiais, com sistemas simbólicos próprios, que são tanto mais autônomos e bem definidos quanto menor for o grau de civilização da sociedade geral. Ocorre também que quanto menor esse grau de civilização, maior a influência do mundo sagrado sobre o profano e sobre as diversas atividades do cotidiano.
Note-se, entretanto, que tanto numa dessas sociedades especiais, quanto em qualquer uma das outras ditas ‘civilizadas’, não deixa de existir a necessidade de satisfazer determinadas condições de representação em determinados momentos da vida, ou da morte.
Em hipótese alguma se pode considerar que as sociedades contemporâneas sejam mundos onde há ausência de rituais, uma vez que todas se organizam em torno de sistemas simbólicos.
Se o sistema simbólico é mítico por excelência, sua ação é necessariamente ritual. Nesse sentido, podemos afirmar que o rito pretende através da celebração ou exaltação, reforçar os valores de determinada cultura, servindo também para introduzir os jovens nos padrões de comportamento do grupo.
Segundo Medina (1973), os povos primitivos executavam cânticos que não somente poderiam fazer parte de determinada cerimônia, como também por muitas vezes consistiam no próprio ritual.
Ainda segundo esse autor, a música nas sociedades contemporâneas, perdeu a dimensão sagrada e mística que possuía. E para combater a “diversão orientada” que se instalou por meio da comunicação de massa, surgem grupos que atuam no sentido de intensificar esses ritos, mesmo sem a correspondência com o sagrado, preenchendo-os com uma dimensão lúdica que poderá levar seus participantes a um conhecimento da realidade em que vivem, falando sobre seu cotidiano ritualizado.
Nosso objetivo neste ensaio é tentar entender como, em diversas ocasiões, a música popular brasileira, particularmente o samba, se apropria e conta determinados ritos de passagem.
Com base no trabalho de Van Gennep pretendemos nos concentrar especificamente nos ritos de separação e agregação que se dão no momento do nascimento, por ele descritos, tendo em vista o trabalho que seria necessário despender no sentido de abranger os mais diversos ritos ainda presentes na cultura urbana.
Para isso valemo-nos, inicialmente, do samba “Gênesis”, de autoria de Aldir Blanc e João Bosco.
Na letra de Aldir Blanc, fica claro o pensamento de Van Gennep quando no capítulo V de “Os ritos de passagem” ele trata especialmente do momento do nascimento, referindo-se aos rituais de separação/agregação do recém-nascido, que “não pode nascer senão depois de ter obtido o favor de todos os assistentes” (p. 59). É por isso que Exu recebe e protege o recém-chegado:
“Quando ele nasceu sacaram o “berro”,
Meteram faca, ergueram o ferro,
Aí, Exu falou: “Ninguém se mete”.

A letra de Blanc trata de vários elementos que estão presentes na análise de Van Gennep. Em primeiro lugar, a indicação do sexo: não há dúvida de que se trata de um menino, tanto pelo pronome “ele” quanto pelo cerimonial do corte do cordão umbilical, que representa também o fim da sua condição de assexuado, ou seja, a separação entre o recém-nascido e o mundo ao qual ele pertencia, nesse caso a sua mãe. O “Cordão cortado com gilete”, um instrumento tão pouco ortodoxo numa situação que requereria, nas sociedades contemporâneas, uma tesoura desinfectada, sugere que espera-se que ele seja um forte, já que
“Quando ele nasceu foi de teimoso.
Tinha a manha e a baba do tinhoso”.

Uma comparação interessante feita pelo letrista, e que representaria a posição social do recém-nascido, é a que faz entre os presentes recebidos pelo menino e aqueles recebidos por Jesus Cristo no seu nascimento:
“Quando ele nasceu, nasceu de birra.
Barro, ao invés de incenso e mirra “.
isto é, sem direito a riqueza e a glória e, provavelmente, sem a aura que poderia torná-lo um mártir, amargando uma crucificação, digna do Rei dos Judeus. Por isso a única coisa que recebeu foi o barro que, segundo A. Dieterich, citado por Van Gennep, pode significar também o prenúncio do retorno da criança à Terra Mãe, como um simples mortal.
Voltando à análise de Van Gennep, encontra-se referência ao fato de que o rito de separação entre o recém-chegado e mãe pode servir de motivo para festas e comemorações em família. Na letra de Blanc,
“Quando ele nasceu tomaram cana.
Um partideiro puxou samba.
Aí, Oxum falou: “Esse aí promete”.

Nascida a criança, ela normalmente recebe um nome que a agrega ao grupo e a identifica dentro do mesmo.
A questão do nome é, para Van Gennep, sem dúvida um rito de agregação. No entanto, se pelo nome a criança é individualizada, pode, ao menos por determinados períodos de tempo, ser designada genericamente. No caso da letra de Aldir Blanc, é designada como “ele”, o que sugere que só mais tarde é que virá a ter um nome, isto se não tiver apenas um apelido.
Esta situação é bastante comum nas classes sociais mais pobres, nas sociedade capitalistas contemporâneas, marcadas por profunda desigualdade econômica. Aliás, a falta do nome, nas camadas mais pobres, que parece indicar uma situação de liminaridade permanente, não é difícil de acontecer. Não ter nome significa não ter uma identidade, condição das pessoas que não são cidadãs, que não estão completamente assimiladas, nem do ponto de vista social nem do ponto de vista civil e esta, no Brasil, não é uma situação impossível.
A pobreza pode vir a romper também com a idéia de que para se chegar ao mundo é preciso licença, o que contém também, sem dúvida, a idéia de liminaridade. Victor Turner, que também produziu explicações teóricas fundamentais sobre os ritos de passagem, trabalha com a noção de liminaridade, isto é, com a possibilidade de, por um determinado espaço de tempo, haver um posicionamento fora das hierarquias, da estrutura e da ordem social. Essa é uma contribuição importante para o entendimento do processo em referência.
Chico Buarque de Holanda, em sua letra de “Meu Guri”, apresenta muito claramente o fato de que não ter ‘nem’ nome é um dado que faz parte da existência de alguns membros das camadas mais pobres da população:
“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar.
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome prá lhe dar.”

É evidente que a não completude do ritual do nascimento do guri faz parte do quadro de marginalidade em que ocorre a sua vida, e que só não é percebido pela mãe, de quem, na verdade, ele não se apartou pois não se completou o ritual de separação/agregação. Por conta disso, ele foi sempre o ‘seu’ guri. Tão inidentificado quanto ela.
“Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro:
chave, caderneta, terço, patuá, um lenço
e uma penca de documentos prá, finalmente,
eu me identificar.
Olha aí, olha o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri.”

Quando o nascimento se completa, a identidade está fixada e o indivíduo se vê plenamente integrado ao seu grupo. Noel Rosa deixa isso muito claro em “O X do problema”:

“Nasci no Estácio
e fui educada na roda de bamba,
eu fui diplomada na escola de samba.
Sou independente, conforme se vê.
..........................................................
Nasci no Estácio
não posso mudar minha massa de sangue.
Você pode crer que palmeira do mangue
não vive na areia de Copacabana.“

Essas narrativas falam todas elas sobre o percurso de rituais: de um momento anterior em que o sujeito ainda não ‘é’, da trajetória liminar que precisa percorrer para ‘ser’ e do que, se completando, assegura a constituição da identidade. DaMatta, em seu “Carnavais, malandros e heróis”, diz que, no que se refere aos ritos, para ele o mais importante é reter a noção de movimento, processo e deslocamento que o ritual sugere. Com isso, percebe-se que é possível que algumas práticas se reconfigurem, sem perder sua qualidade de rito. Aliás, não é sem razão que Segalen (2002) destaca a idéia de que “uma das principais características do rito é a sua plasticidade, a sua capacidade de ser polissêmico, de acomodar-se à mudança social”. (p.15)
Medina (1973), citando McLuhan, diz que “uma sociedade oral e tribal tem meios de estabilidade além do que é possível para um mundo fragmentado, civilizado e visual” (p. 47) e, poderíamos completar, ‘desigual’, Mas mesmo assim, nem sobre ele é possível afirmar que impera apenas o racional e que dele os rituais estão ausentes.
Em inúmeros outros sambas identificamos que há, mesmo nas sociedades urbanas, a permanência de práticas rituais que cercam não só o nascimento, mas vários outros ritos.
À guisa de conclusão, podemos dizer que a teorização realizada por Van Gennep e Turner tem permitido a muitos sociólogos e antropólogos refletir sobre as relações que ocorrem entre os homens/mulheres entre si e entre os homens/mulheres e o lugar em que vivem, ajudando-os a suportar, como diz DaMatta na apresentação de “Os ritos de passagem”, “os gestos mais pesados da vida cotidiana”.
A interpretação dialética que fazem dos ritos, identificando seu movimento de tese-antítese-síntese, explica vários momentos que marcam a vida dos seres humanos, nessa contradição permanente nascimento/morte, nesse jogo em que todos estamos de passagem.

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