quinta-feira, 14 de junho de 2007

Uma Concepção Antipositivista da Ciência: uma leitura de Boaventura Souza Santos

O objetivo deste texto é, em linhas gerais, apresentar as principais idéias contidas no livro “Um discurso sobre as ciências”, do Prof. Boaventura de Sousa Santos, publicado no ano de 1987, em Portugal, e que corresponde a uma versão ampliada do discurso por ele proferido na abertura solene das aulas da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86.
Nessa obra o autor defende uma posição teórica antipositivista com relação às diversas áreas do conhecimento científico que, para ele, será sempre definido socialmente. Isso significa que, apesar de objetiva, a ciência não pode ser neutra.
Ao caracterizar, mesmo que de forma sucinta, a ordem científica hegemônica, Boaventura observa que o paradigma científico dominante na sociedade moderna, constituído a partir do século XVI, foi desenvolvido dentro do espaço delimitado pelas ciências naturais. Estabelece-se, então, uma distinção clara entre as ciências naturais e o conhecimento não científico, dentro do qual podemos destacar tanto o senso comum como os estudos humanísticos, nos quais se incluem a filosofia, o direito, a história, a literatura e outros.
Por considerar que nada escapa aos seus horizontes, essa perspectiva científica é também totalitária, visto que nega a possibilidade de racionalidade de quaisquer outras formas de conhecimento que não sigam seus princípios, leis e métodos. Segundo essa concepção, ao contrário do que pensava Aristóteles, o cientista deve sempre desconfiar da experiência imediata por esta ser ilusória. A observação do objeto deve ser, por conseguinte, sistemática e rigorosa, não dispensando a teoria prévia, mas requerendo, através da observação dos fatos, sua verificação.
Do rigor científico inerente a este paradigma decorrem duas situações: a primeira, é a pouca importância dada às características ou qualidades dos objetos estudados, em favor da sua quantificação ou mensuração; a segunda, é a tendência à monocausalidade, observada na redução da complexidade dos fatos observados.
A formulação das leis da ciência se baseia, de acordo com esta visão, no isolamento arbitrário das condições iniciais (causas) relevantes e na idéia de que os mesmos resultados se produzirão de forma mecânica, sempre que estiverem presentes essas condições iniciais, independentemente do tempo e do espaço.
No plano social, esse mecanicismo era a idéia que melhor se adequava aos interesses da burguesia ascendente, que enxergava nessa sociedade o estágio final da evolução humana.
A influência desse modelo mecanicista nas ciências sociais ocorreu, entretanto, de duas formas mais ou menos distintas. A primeira delas consistia em aplicar ao estudo da sociedade os princípios das ciências naturais. Um dos principais obstáculos a essa perspectiva foi sempre a dificuldade de se estabelecer leis universais, tendo em vista que os fenômenos sociais são histórica e culturalmente condicionados.
A segunda maneira através da qual o modelo mecanicista se manifestou nas ciências sociais, partia da idéia de que esta última deve desenvolver seus próprios métodos de investigação. No entanto, assim como na primeira vertente, nesta também está implícita a concepção de distinção entre natureza e ser humano.
Para o autor, são fortes os indícios de que o paradigma científico dominante apresentado acima está em declínio e que esta crise é irreversível. Isso ocorre, em primeiro lugar, devido à exposição de suas insuficiências estruturais, causadas, entre outras coisas, pelo grande avanço tecnológico que ele próprio propiciou.
Outro fator que contribuiu para a já referida crise é a existência de limites para o rigor da medição que possibilitaria o conhecimento. Percebeu-se, claramente, só se poderia chegar a resultados aproximados, inviabilizando o determinismo mecanicista.
Por fim, as idéias de autonomia e desinteresse do conhecimento científico, que durante anos foram defendidas pelos cientistas, foram derrubadas diante da industrialização da ciência. Esta última contribuiu para o aumento da dependência do conhecimento científico em relação aos pólos de poder social, político e econômico mundiais.
Nesse sentido, é através da via especulativa que o autor aponta, em meio a toda essa crise dos modelos científicos colocados até então, para a configuração de uma nova racionalidade científica, a qual ele mesmo chama de paradigma emergente. Este, por sua vez, não pode ser apenas um paradigma científico, mas também social, onde a distinção entre ciências naturais e sociais desapareça, visto que o conhecimento científico é determinado socialmente. Somente dessa maneira será possível escapar da concepção mecanicista de natureza e de sociedade que retira do homem a possibilidade de ação sobre seu próprio destino.
Boaventura não se limita, porém, a indicar a tendência de superação dessa distinção, ele indica também o sentido e o conteúdo dessa superação, que ocorre agora sob a égide das ciências sociais.
O autor destaca que, ao contrário da ciência moderna, instituída no século XVI, na qual quanto mais rigoroso é o conhecimento, mais arbitrariamente partilhado é o objeto sobre o qual ele incide, o paradigma emergente caminha no sentido da totalidade, isto é, da não-fragmentação. No entanto, sendo total, o conhecimento também é local, pois é adotado por grupos sociais com projetos locais. E sendo local, ele é total, pois retoma os projetos locais de busca do conhecimento, destacando a peculiaridade do objeto estudado e transformando esse conhecimento em pensamento total.
Por isso mesmo, uma outra construção, típica do pensamento científico advindo da modernidade, que está sendo derrubada, mesmo no campo das ciências físico-naturais é a dicotomia sujeito/objeto,
Para o autor há uma evidência clara de que esse rompimento precisa ser superado em função de se constatar que o sujeito constrói o objeto sobre o qual discursa. É neste sentido que Boaventura afirma que todo conhecimento é autoconhecimento, porque gerado dentro do homem e na sociedade, partes integrantes da explicação científica, que é, aliás, apenas mais uma explicação da realidade, o que significa dizer que não é a única. Num certo sentido, representa até um juízo de valor considerá-la mais verdadeira.
A rearticulação do par sujeito-objeto requer o entendimento de que as crenças, os juízos, os valores que o investigador carrega em si, como homem que é, são também um conhecimento importante e que permite a construção de outros saberes. Para ele, esse caráter auto-biográfico e auto-referenciável está sendo compreendido como constituidor do pensamento científico pós-moderno.
O pensamento complexo, advogado pelo autor como o que pode dar conta do vínculo homem-natureza, necessita, na ótica de Souza Santos, de todo e qualquer conhecimento, inclusive do conhecimento do senso comum, no qual conhece certas virtualidades.
Neste sentido, aconselha sem nenhum pudor, um diálogo entre o pensamento científico e o senso comum, com o objetivo de que as vantagens de ambos sejam potencializadas dando, origem, segundo ele, a uma nova racionalidade.
Recomenda que – ao contrário do corte epistemológico proposto pela ciência moderna, que significava o rompimento com o senso comum e a instituição de uma outra forma de pensar o mundo, considerada científica – o conhecimento científico da pós-modernidade se deixe entranhar pelo senso comum, no que ele tem de sabedoria de vida, e este último pelo saber científico, no que ele pode representar de explicação sobre o homem, sob diversos aspectos.
Conclui dizendo que reconhece que esta é uma possibilidade que ainda não se concretizou, até porque o paradigma emergente que anuncia está em gestação, neste momento de transição no qual se pretende recolocar novas formas de pensar e entender o mundo, afinal a grande e infindável aventura humana.

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